
Entrevista com Maria Ângela Leal Rudge – psicóloga, professora e consultora da QCP
A Lei da Escuta Protegida, nº 13.431 de 4 de abril de 2017, é um marco na trajetória de direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, criada para garantir que as vítimas de violência não precisem relatar seu trauma repetidamente, causando ainda mais sofrimento.
Embora seja considerada um avanço significativo nas questões legislativas brasileiras, é importante ressaltar que o país se preocupou com o grupo infantojuvenil de forma tardia.
O grupo era tratado sem uma perspectiva de direitos sociais ou ancorados por uma política de ascendência social. O desenvolvimento do ECA permitiu que a sociedade e governos passassem a encarar as crianças e adolescentes a partir de um novo ponto de vista, com embasamento sociológico e antropológico.
Entre as consequências da Constituição Federal e do ECA, está a mudança na centralidade da política do governo federal. A fim de alcançar os direitos propostos, foi adotado um princípio de municipalização, para que os municípios se responsabilizassem pelo cumprimento das normas, como, por exemplo, a partir do Conselho Tutelar.
Marco histórico na legislação brasileira: Lei da Escuta Protegida
A Lei da Escuta Protegida possui um caráter que depende da ação municipal, ou seja, os municípios são responsáveis pela estruturação e aplicação da Lei. Entretanto, é preciso uma forte articulação entre os órgãos responsáveis para que a Lei seja, de fato, efetiva.
A psicóloga e professora Maria Ângela Leal Rudge, comenta que, apesar da Lei da Escuta Protegida ter sido criada em 2017, foi apenas em 2022 que houve um pacto nacional, que visou criar um fluxo de todos os envolvidos no processo e ancorar a implementação da legislação.
Maria Ângela é uma profissional da QCP – Inteligência em Políticas Públicas, reconhecida nacionalmente pelo seu trabalho na implementação de projetos na área e desenvolve atividades no VIA – Votorantim pela Infância e Adolescência.
O programa atua na promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente a fim de reduzir índices de vulnerabilidade e violência e promover a qualidade de vida local.
Confira o bate-papo com Maria Ângela sobre os desafios e estratégias para a implementação da Lei da Escuta Protegida
De que maneira é construído o fluxo de atendimento integrado entre as áreas envolvidas?
“Existem algumas ações estratégias para a implementação da Lei. A primeira parte é fazer uma pactuação e criar um comitê de gestão, para que ele se responsabilize pela implementação da Lei da Escuta Protegida. Quem deve participar?
Todos os órgãos envolvidos neste processo. A segunda etapa é fazer um diagnóstico de como as situações de violência estão sendo trabalhadas. Esse mapeamento permite identificar as necessidades de melhoria e criar um eixo de ancoragem do trabalho.
O terceiro passo é fazer fluxo, mas não adianta pensar em apenas um fluxo. É necessário fazer o fluxo da saúde, da educação, da assistência, das organizações, da polícia, do poder judiciário, do Ministério Público, e assim por diante. A partir disso, nós apresentamos para a rede, geramos conhecimento e avaliamos as propostas de forma participativa ”.
Órgãos responsáveis pelo Comitê de Gestão Colegiada
- Conselho Municipal dos Direitos de Crianças e Adolescentes;
- Conselho Tutelar;
- Rede de Educação;
- Rede de Saúde;
- Rede de Assistência Social;
- Forças de Segurança;
- Ministério Público;
- Sistema de Justiça;
- Organizações da Sociedade Civil.
Esses atores são definidos pelo Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SDDCA) e devem exercer as funções a partir de três eixos: I) promoção dos direitos humanos; II) defesa dos direitos humanos; III) controle da efetivação dos direitos humanos.
Existem protocolos e capacitações para os profissionais na Lei da Escuta Protegida?
“Depois que fazemos os fluxos e definimos os papéis, começamos a construir um protocolo integrado de uma cidade. Enquanto o fluxo é o caminho que se percorre, o protocolo nada mais é do que o ‘como fazer’.
Então, é um grande desafio criar um protocolo. Nele, especificamos todas as informações: o que é a Lei da Escuta Protegida, quais são os conceitos, o que é a escuta protegida, qual o papel da educação, da saúde, quais são os instrumentos, como eu faço um relatório, etc.
E a formação, ela vai se fazendo com a implantação do projeto e capacitação dos profissionais. A formação não é sentar em uma sala de aula e falar ‘agora vamos começar a aula um’. Não, é trabalhar junto, fazer junto, é um processo de construção coletiva eminentemente formativa, um projeto muito filigranado e muito demorado”.
Há um padrão único dessas capacitações, já que a realidade dos territórios é diferente?
“Eu inicio a formação pelo histórico, contextualizando as leis, criando a política de atendimento prevista pelo ECA. No processo de formação, é alinhado qual o papel de cada ator no sistema de garantia de direitos […] Nós criamos algumas propostas, o que eu chamo de rotas formativas, e o protocolo é um documento que vai ser entregue somente no final do projeto, como um documento balizador daquela cidade.
Quando falamos de planejamento estratégico, juntos vamos construir também um plano municipal de enfrentamento das violências […] Eu estive num encontro com 45 professores e educadores da rede estadual e municipal de Jaíba-MG, e foi tão emocionante.
Eles falaram que não estavam mais se sentindo sozinhos. Eles recebem muita demanda, os alunos falam muito para os professores e eles não sabem o que fazer, então, o que criamos é uma lógica para aquela cidade”.
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” — Provérbio africano, mencionado por Maria Ângela
Se existir revitimização, quais procedimentos precisam ser feitos?
“O que é revitimizar? Quando a criança é obrigada a falar várias vezes. A Lei da Escuta Protegida foi feita para que isso não ocorra. Às vezes, não ficamos sabendo, mas temos uma estratégia em que você cerca todo mundo na rede, porque você tem um instrumento a partir de uma planilha, em que você vai sistematizando, vai monitorando os dados e criando um caldo de conhecimento para a criança não falar de novo […] Existe um fenômeno que se chama ‘espanto fantástico’.
O ser humano tem um comportamento que é o espanto por aquilo que é fantástico […] Como profissional, você precisa lidar com a curiosidade, você está desempenhando um papel. A lógica da revitimização não é quando ela ocorre, mas é não deixar a criança ser ouvida várias vezes. E evitar a revitimização não é a criança não falar, mas permitir que ela não volte à situação traumática”.
“Revitimização para a Lei da Escuta Protegida é um sofrimento desnecessário” — Maria Ângela Legal Rudge
Como a metodologia da Lei da Escuta Protegida garante credibilidade à vítima quando a prova está somente na memória dela?
“Na rede de proteção, nós não temos que saber se aquilo é verdade ou não. Se a criança está dizendo, use aquela lógica da psicologia: se algo é dito, isso é um sinal, um sintoma.
Existem estudos que dizem que, quanto mais tempo vai passando, mais afeita a criança está ao esquecimento, ao fechamento do trauma, para esquecê-lo e não sofrer. Além disso, a criança também está sob influência de uma série de membros familiares. É uma situação extremamente delicada, que tem variáveis intrapsíquicas, inconscientes, sociais.
Então, a ideia é acolher na hora a criança quando ela falar, registrar, mandar para a polícia e eles que irão investigar […] Trabalhamos com a identificação de sintomas físicos e emocionais, porque a criança muda muito rapidamente. É importante saber identificar sinais, entender o que está acontecendo.
Pode ser que não seja uma violência sexual, pode ser que seja um bullying ou uma violência na escola que ela está sofrendo e não contou para ninguém.
Por exemplo, a criança começa a ficar retraída, não come, está emagrecendo, dormindo na sala de aula porque ela fica em estado de vigilância à noite, tudo isso são sinais. Vamos colocar os órgãos de proteção e de saúde mental para fazer um estudo, para ouvir todo mundo e inseri-la em algum tratamento.
A nossa lógica é cuidar da criança e a outra está na esfera do sistema de justiça, do processo de responsabilização, do inquérito policial e do processo de judicialização da vara criminal”.
Como a QCP – Inteligência em Políticas Públicas atua no planejamento estratégico em apoio aos fluxos de atendimento?
“A QCP é uma instituição que presta consultoria em todas as áreas das políticas públicas, inclusive nas questões envolvendo crianças e adolescentes.
No Programa VIA, por exemplo, é o braço técnico do Instituto Votorantim no território, uma empresa contratada para executar os componentes do programa, como ferramentas metodológicas e instrumentais.
É importante contratar uma consultoria porque o município não dá conta sozinho, não temos documentos suficientes para direcionar as ações, não se trata só da leitura de um texto. Há a necessidade de ter uma maior densidade, mais estudos, uma maior sistematização de tudo isso”.
A QCP se compromete com o futuro das crianças e adolescentes
Além de ações que envolvem a Lei da Escuta Protegida, também já atuamos em prol de outras áreas que afetam o público infantojuvenil, como para garantir melhorias na educação pública.
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